"a vida do indivíduo é substituída por uma vida impessoal, embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. 'Homo tantum' por quem todo mundo se compadece e que atinge uma certa beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas sim de singularização: uma vida de pura imanência, neutra, além do bem e do mal, já que só o sujeito que a encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em benefício da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida..." (Deleuze, 1995/2001, ps. 28-29).
Eis aí uma teoria radical do inconsciente enquanto pensamento puro, que faz dele um elemento subversivo, absolutamente desvinculado de qualquer formação consciente, e que possibilita pensar em formas de subjetivação também radicalmente estranhas à normalidade. De acordo com Deleuze, se o pensamento tradicional e a psicologia da consciência procuram nos impor como alternativa ou um Ser soberanamente individuado (forma altamente pessoalizada) ou um fundo indiferenciado — abismo sem diferenças, sem fundo, não-Ser informe — é porque não conseguem conceber singularidades determináveis que não estejam absolutamente aprisionadas
A representação liga a individuação à forma do Eu e à sua matéria. Nestes termos, o Eu assume a forma da individuação superior e torna-se princípio de identificação e recognição para qualquer juízo de individualidade que incida sobre as coisas. "Para a representação, é preciso que toda individualidade seja pessoal (Eu) e que toda singularidade seja individual (Eu). Logo, onde se pára de dizer Eu, pára também a individuação; e onde pára a individuação, pára também toda singularidade possível." (Deleuze, 1969/1988, ps. 435-436, grifado no original). Um Eu passivo, como este, é apenas um acontecimento localizado em campos prévios de individuação, e que se constitui no ponto de ressonância de suas séries individuantes. Até mesmo o Eu divido, postulado por certas visões estruturais de inspiração hegeliana, ainda deixaria passar todas as idéias definidas por suas singularidades, elas mesmas prévias aos campos de individuação.
Para o Estado, portanto, como Deleuze também já havia indicado, o que importa não é jamais a singularidade enquanto tal, mas somente sua inclusão em algum tipo de identidade. Por estas razões, um ser privado de qualquer identidade representável seria absolutamente insignificante para o Estado. Neste sentido, a comunidade que vem — pautada na individuação impessoal e na singularidade qualquer, que rejeita peremptoriamente qualquer condição de pertencimento — será a principal forma de resistência ao modelo societário dominante na atualidade.
"Uma vida está em todos os lugares, em todos os momentos que atravessa esse ou aquele sujeito vivo e que são medidos por determinados objetos vividos: uma vida imanente levando consigo os acontecimentos ou singularidades que apenas se atualizam em sujeitos e objetos" (deleuze)
Carlos Augusto Peixoto Junior
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